domingo, 13 de maio de 2018

O vidro mágico

Axel Morin

Entre o líquido e o sólido na fotografia de Axel Morin


Palácio de Cristal, Londres, 1851 (img), The Home Insurance Building, Chicago, 1885 (img), Industrial Housing, Chicago, 1910-1930 — três dos principais marcos de uma trajetória que nada nem ninguém explicou melhor do que este anúncio de 1919: ”Aladdin Services: a complete home or a complete city”.

The Alladin Company, Bay City, Michigan (1906-1987), Wikipedia


Que têm em comum estes três ícones da cidade moderna? O vidro industrial.

O vidro é um material através do qual sou visto, e através do qual vejo, que deixa passar a luz, que queima a humidade e apaga os bolores acumulados nos espaços interiores, uma superfície omnipresente, mas que não deixa de se esconder na sua própria transparência.

O vidro que permitiu inundar de luz natural as cidades a partir de meados do século 19, começou por ser uma resposta à necessidade de diminuir os custos de iluminação em dezenas de milhar de fábricas e oficinas que trabalhavam dia e noite. Foi também uma maneira de ajudar a superar as crises sanitárias causadas pela ‘segunda revolução industrial’ (1870-1914), nomeadamente em cidades tumultuosas e com grande afluência de imigrantes, como Nova Iorque, Chicago ou Filadélfia. Desde que uma tal emergência gerou a oportunidade para a produção maciça de vidro aplicável em empresas e edifícios de habitação, nunca mais este misterioso material que nem é líquido, nem sólido, nos abandonou. O Pirex de 1908, o vidro superfino dos LCD dos atuais televisores, ecrãs de computador e ‘smartphones’, sucessivamente desenvolvidos por Clint Shay (1964) e pela Corning (1970-1980), passando pelas grandes lâminas de ‘float glass’ desenvolvidas pela Pilkington desde 1953-1957, e que recobrem a maioria dos centros de negócios das grandes cidades, ou os milhares de milhões de lentes utilizadas em óculos, binóculos, telescópios, microscópios, e objetivas para fotografia, cinema, video, testemunham até que ponto o vidro faz parte da vida moderna.

Mas se o vidro industrial foi sendo desenvolvido para podermos ver através de uma janela ampla o pulsar de uma cidade e o que se passa no prédio em frente ao mesmo tempo que o Sol inunda o interior de uma casa, um escritório, uma caixa íngreme de escadas, ou para dotar as lojas com as montras sedutoras que provavelmente inspiraram Marcel Duchamp a produzir o seu Grande Vidro, “La Mariée mise à nu par ses célibataires, même”, outros vidros, chamados lentes, foram extraordinariamente aperfeiçoadas desde finais do século 19, nomeadamente pelo famoso fabricante Carl Zeiss, com o objetivo de observar as estrelas mais distantes, os nossos intestinos, ou a matéria mais pequena, com sistemas oculares tão ou mais perfeitos que a visão humana.

À vista desarmada, sem a mediação transparente de um vidro mágico, a cidade e a arquitetura não podem ser completamente apreciadas, pois falta ao observador o enquadramento e o filtro adequados a um modo de percepção crítica e gozo estético que só a imagem filtrada por um ou mais vidros permite alcançar.

O vidro mágico é uma membrana ultra fina e cristalina de mediação simultaneamente especulativa e sensorial da realidade que nos rodeia.

Axel Morin

Esta será, aliás, uma possível explicação para o fascínio causado em todos nós pela fotografia, criada por um artista como Axel Morin, formada no interior do telescópio espacial Hubble, ou nascida numa ‘selfie’ modelada com os filtros do Snapchat e partilhada efemeramente entre vários amigos.

A produção industrial, nomeadamente de vidros para janelas e fachadas de edifícios, dramaticamente aperfeiçoada entre finais do século 19 e meados do século 20 (‘float glass’), retiraram a arquitetura do mundo das ‘belas artes’, transformando-a numa indústria de construção especializada no fabrico e instalação de máquinas de habitar complexas, articuladas entre si por meio de redes funcionais.

As redes de esgotos, água canalizada, gás e eletricidade, as ruas e as redes ferroviárias e rodoviárias, as redes de iluminação pública e de sinalização para peões e automóveis, as redes de telecomunicações, de logística e de distribuição comercial, as redes de frio, as redes de televisão, de hospitais, e de distribuição cinematográfica, etc., permitiram a passagem do urbanismo palaciano e militar, ao urbanismo democrático, contribuindo assim para a florescência da cidade moderna.

As cidades industriais, que se encheram de populações rurais e de imigrantes de todas as raças em busca do trabalho assalariado, sofreram um processo de densificação tremenda, primeiro na horizontal, depois na vertical, e finalmente através da expansão radial e conurbada.

Para encurtar as distâncias entre a fábrica, os entrepostos logísticos e comerciais e a cama, ou seja, entre a casa, o trabalho e o lazer, as cidades apertaram e viram encarecer não só a malha superficial da propriedade capturada para a construção de imóveis urbanos, como começaram rapidamente a expandir-se em altura e profundidade.

À medida que as redes ferroviárias se multiplicaram e as rodovias se encheram de automóveis, o tecido urbano estendeu-se na forma de subúrbios, cidades-satélite e contínuos urbano-industriais agregando cidades e inter-cidades. O espaço-tempo, isto é o preço da mobilidade, passou a determinar a extensão e a configuração das cidades, bem como a diversidade sociológica e cultural dos seus residentes e da sua população flutuante.

Grosso modo, o nascimento, expansão e maturidade deste paradigma antropológico dá-se entre 1870 e 1970 (Gordon, 2016), sendo particularmente cristalino nos Estados Unidos da América.

Este modo de vida foi o fruto de uma era de crescimento económico, demográfico e industrial muito rápido, sob o impacto do extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico europeu (séculos 18, 19, 20), e depois americano (séculos 19, 20). E assenta em formas revolucionárias de trabalho mecânico em larga escala tornado possível pelas máquinas a vapor, pela eletricidade, e pelos motores de explosão.

O carvão mineral e o petróleo são as principais fontes energéticas que possibilitaram este momento ímpar na história da humanidade. Porém, o esgotamento do petróleo e do carvão abundantes e de fácil acesso tornou os seus derivados industriais cada vez mais caros. Quem hoje consome produtos ricos em energia fóssil (por exemplo, adubos, pesticidas, gasolinas, alcatrão, plásticos, ou têxteis sintéticos) tem vindo a perder capacidade de aquisição, endividando-se, ou abrandando por este constrangimento o ritmo da procura dos derivados do petróleo, o que, por sua vez, tende a travar ciclicamente a pressão constante para o aumento do preço de um bem cada vez difícil de obter. Quem, por outro lado, produz derivados do petróleo e do carvão, assim como produtos com elevada densidade energética e petroquímica, tem vindo a deparar-se com custos de produção crescentes à medida que estas matérias-primas vão estando mais longe e a sua extração e transformação consomem mais energia. Ou seja, o preço de venda do petróleo tornou-se caro para quem o consome, barato para quem o produz, e tende a oscilar de forma especulativa nos mercados financeiros.

Esta escassez energética ameaça o futuro do crescimento e a paz nas cidades.

Axel Morin
Detroit, que vive há décadas um processo de decadência extrema, associada à falta de competitividade dos seus automóveis devoradores de gasolina, perdeu 60% da população de 1950 para cá, tornando-se uma cidade violenta, que acabou por declarar falência em 2013.

Desde 1998, mais de cinquenta cidades norte-americanas entraram em bancarrota e pediram auxílio estatal. O declínio demográfico tornou-se dramático em cidades outrora tão importantes, conhecidas ou míticas quanto New Orleans, Dayton, Scranton, Niagara Falls, Buffalo, Pittsburgh, Gary, Cleveland, Youngstown, e a já mencionada Detroit.

A criminalidade urbana tornou-se endémica. A população prisional nos Estados Unidos não parou de aumentar desde finais de 1970 até hoje.

Detroit, entre outros símbolos urbanos da América, foi retratada recentemente pelo fotógrafo urbano francês Axel Morin. Ao observar o seu trabalho sobre a decomposição dos símbolos do Sonho Americano, num projeto a que deu o título “Once upon a time in America” (2015), ficamos com uma certeza: o discurso oficial da cultura e as modas da arquitetura escondem um declínio dramático das cidades. Nas revistas de arquitetura, como nas revistas de arte e de moda, o mundo dos objetos criados por arquitetos, artistas e designers é habitado mais por quimeras rodeadas de retórica, do que pelas esquinas duras da realidade.

E no entanto, artistas como Axel Morin, tal como noutra época, Robert Frank, Larry Clark, Nan Goldin, ou Philip-Lorca diCorcia, conseguem mostrar ao mesmo tempo a realidade dura das esquinas, mas também os poemas que elas exalam. Porque será? Talvez os bons fotógrafos tenham aprendido a observar a vida através de vidros mágicos que não mentem, mas perdoam.

Andy Warhol ficou fascinado com a superficialidade repetitiva dos média, com a ausência de profundidade da imagem noticiosa que incensava ricos, famosos e poderosos. A morte de Marilyn Monroe, e a imagem condoída de Jacqueline Kennedy após o assassinato do seu marido presidente levaram-no a exaltar o realismo mediático nas suas famosas pinturas realizadas com serigrafia sobre tela. A primeira destas obras — Marilyn Diptych (1962) — produziu-a pouco tempo depois do desaparecimento da estrela de cinema, em 1962. Warhol realizou depois mais de trezentas obras com imagens de Jacqueline Kennedy capturadas em jornais e revistas um ano depois do assassinato do presidente americano, a qual ocorrera curiosamente um ano depois da morte misteriosa de Marilyn. Em todas estas imagens repetidas, a realidade que deixara de ser realidade, para ser notícia, sobre-exposição, hiper-realidade, tornar-se-ia, na sua deslocação em direção ao universo da pintura, um novo index da figuração artística.

Daqui a muitos anos que distinção faremos ao comparar as imagens da revista Time com as pinturas de Andy Warhol? Quando observo as fotografias de Axel Morin, mostrando uma realidade que é, afinal, tão democrática quanto a morte mediática de uma estrela de cinema, ou a biografia plástica de uma dama presidencial de luto, a questão crítica e antropológica sobre a natureza e a finalidade da arte na cidade moderna parece-me todavia por resolver. Não subsistem, porém, quaisquer dúvidas sobre a realidade intempestiva dos misteriosos cristais que abriram em nós uma nova perceção do mundo.


Bibliografia

Amy Newson, “Capturing the real essence of New York’s underbelly”, Dazed (2016)
Axel Morin. axelmorin.tumblr.com/ axel-morin.squarespace.com/
Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers William W. Behrens III, The Limits to Growth. (1972)
Gordon, Robert J., The Rise and Fall of American Growth: the U.S. standard of living since the Civil War. (2016)
Murray, Charles, Coming Apart: the state of White America, 1960—2010. (2012, 2013)
Pamela Engel and Rob Wile, “11 American Cities That Are Shells Of Their Former Selves” [American Cities in Decline], Business Insider, Jun. 26, 2013, 10:57 AM


NOTA

Este texto foi originariamente publicado na revista Arqa nº 127 (2017)

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