segunda-feira, 14 de maio de 2018

Arte urbana, o que é?

Graffiti by Banksy in the Israeli-occupied Bethlehem
Photo credit: Magne Hagesæter (2008) ~ Magne / Foter.com / CC BY-NC-ND (Link)

Arte na cidade e arte urbana. Confusão injustificada


Arqa — Contornando a redundância dos meros labels, acha que se pode encontrar uma definição actual para a “street art”?, ou, pelo menos, encontrar uma forma de reconhecer o que é “arte” no espaço público?

António Cerveira Pinto — Tende a haver uma confusão injustificada entre arte na cidade e arte urbana, ou street art. A arte na cidade, e nos edifícios que a compõem, existe desde que existem cidades, dos monumentos históricos que organizam praças e largos, às esculturas e pinturas que decoram os edifícios por dentro e por fora. A chamada arte urbana (street art) e a arte pública são, no entanto, coisa diferente da convivência entre a cidade e as artes da arquitetura, da pintura, da escultura, e as artes decorativas em geral (nomeadamente as manifestações de arte efémera que têm lugar, por exemplo, em festividades como o Carnaval, as Festas dos Santos na Cidade de Lisboa, ou as Fallas de Valéncia).

A emergência da street art e da public art deriva sobretudo daquilo a que poderíamos chamar uma reivindicação artística e democrática do espaço público face à sua exponencial privatização e ocupação comercial, nomeadamente pela indústria da construção imobiliária e da publicidade. Esta exigência crítica das artes face à expropriação do espaço público pelo Capitalismo é também uma resposta ao deserto artístico que caracteriza sobretudo as zonas residenciais urbanas e suburbanas que emergiram do pós-guerra, na década de 50 do século passado, e continuam a proliferar por esse mundo fora à medida que as populações migram aos milhares de milhões para as cidades.

O espaço público tem sido literalmente devorado pelo imobiliário residencial e pelas estradas por onde circulam os automóveis.

Raramente os poderes públicos conseguiram resistir à pressão especulativa imobiliária que faz com que cada metro quadrado de cidade se torne demasiado valioso (nomeadamente em receitas fiscais) para nele deixar crescer uma árvore, quanto mais uma obra de arte! Ou seja, os movimentos de arte pública e de arte urbana são movimentos de crítica a um estado de coisas inaceitável. E é enquanto movimentos críticos que são interessantes. Deixam de o ser quando são capturados por estatégias de consenso e cinismo políticos, transformamndo-se por esta via em mais uma diversão pirosa e populista da cidade.

Nalguns casos, sobretudo nos novos centros urbanos, a lógica da especulação imobiliária estende-se à especulação das artes, e assim, convidam-se os 'grandes artistas' e os 'grandes arquitetos' a posarem juntos, pousando as suas obras no espaço-ouro da cidade. Aqui retoma-se, por assim, dizer, o modelo antigo da harmonia entre a cidade e os seus monumentos, ainda que estes últimos já não celebrem vitórias militares mas, mais modestamente, na sua abstração ou formalismo, as grandes empresas e os grandes especuladores, em suma, o novo poder económico.

A relação entre arte, arquitetura, construção e especulação é de tal modo estreita que raramente vemos na cidade nova um monumento ideológico—e quando vemos, o mesmo é, regra geral, medíocre. Seja como for, quer os blue chips da arquitetura e da arte que merecem pisar o solo urbano mais valioso, quer as encomendas oriundas do populismo democrático a que são destinados espaços menos nobres ou os subúrbios, pequenas cidades, etc., correspondem ao que podemos em rigor chamar arte pública. Empreiteiros e políticos cedem aos arquitetos e artistas na medida em que estes últimos, ao resgatarem algum do espaço público para as artes, em vez de o deixar morrer na especulação financeira, o fazem em nome de um valor intrinsecamente público: o usufruto estético da cidade.

A beleza da arquitetura e da arte evanesce para lá do perímetro da propriedade, e como tal é coisa pública, ao contrário do betão, do metal e da borracha, que atravancam o que é de todos (commons) com o peso da mera propriedade.

Por fim, a arte urbana difere da arte pública, na medida em que a sua origem é distinta.

A arte pública é o resultado de um regresso às origens, ou seja, é uma arte civilizada, negociada, democrática, que acaba por superar as próprias expectativas financeiras dos empreiteiros e políticos, geralmente pouco cultos, ajudando a amenizar a violência urbana da própria especulação imobiliária.

Já a street art é uma coisa diferente. A sua origem está na própria marginalidade económica e estética que a cidade em explosão demográfica gera. É, por definição, uma arte ilegal, ou que prospera nos vazios da legalidade, nomeadamente municipal. Que se confunde frequentemente com a street fashion, o outro lado dos fashion catwalks. É também a pop culture que deu passo a Arte Pop, ou seja, a arte urbana é composta pelas emergências estéticas muito diversas da cidade e dos seus subúrbios, que existe por definição fora das academias tradicionais, dos museus e as galerias de arte convencionais, em suma, fora da caixa do consenso burguês pós-moderno. Quando esta espontaneidade estética orgânica das cidades se vê apertada pelas dinâmicas da desigualdade exponencial e da injustiça, transforma-se numa torrente imparável de graffiti e tags. Pretender domesticar esta torrente com doses de populismo barato é contraproducente, e gera um novo kitsch a que podemos chanar graffiti municipal.

Arqa — A arte urbana é individualista? Uma expressão singular, até hedonista, dos indivíduos, ou pode encerrar conteúdos colectivos para além das “tribos” urbanas?

ACP — A arte urbana é essencialmente uma arte partilhada pela tribos urbanas, locais e globais. Quer seja nas livrarias, em exposições de Manga, nas salas de tatuagem, e ações de graffiti, no Skate e no Surf, nos encontros e desfiles informais de moda urbana (Harajuku, etc.), ou ainda nas novas e sofisticadas galerias europeias de Kinbaku, a arte de amarrar um corpo humano suspenso.

Arqa — Existe uma dimensão ideológica e social no graffiti? Ou, pelo contrário, ele esgota-se na simples acção subversiva, underground?

ACP — O verdadeiro graffiti, e não as suas variantes pirosas consagradas pelo populismo político, é uma arte por definição subversiva, e como tal, política e socialmente pregnante. Na sua forma mais radical, críptica e destrutiva (tags) exibe propriedades muito semelhantes às pichagens políticas, só que programaticamente vazias. Há graffitis que são obras primas, mas na maioria dos casos não passam de exercícios de virtuosismo banal que não deixam rasto, embora sujem e danifiquem a propriedade. Por vezes, roçam mesmo a boçalidade cultural e a estupidez, e assemelham-se a formas benignas mas incómodas de terrorismo urbano. Quando alguns 'artistas' de graffiti resolvem passar a noite em Carcavelos a pintarem todas as janelas de um combóio obliterando literalmente a transparências dos vidros, obrigando assim os passageiros de classe média, de classe média baixa, ou de condição ainda mais modesta, a viajarem sem poderem ver o rio, o mar e o céu, a discussão deixa de se poder colocar no campo da arte, ou mesmo da anti-arte.

Arqa — A arte urbana é sempre subversiva? E até que ponto a subversão, como ideário artístico se articula com a mera expressão de signos individuais ou mesmo marginais do graffiti?

ACP — Não. A arte urbana pode ser subversiva, mas também submissa com aparência de subversiva. Nos casos subversivos, por não terem programa político que os distinga semioticamente do magma icónico da cidade, tendem a desenvolver estilos e a imitar. Mas como acima referi, a arte urbana é muito mais do que graffiti. Há, por exemplo, uma importante dimensão ideologicamente subsersiva na banda desenhada e no romance gráfico, ou no skate painting. Exemplos: Art Spiegelman, Robert Crumb, Banksy, Ed Templeton, Robert Williams, etc.

Arqa —Sabendo que o graffiti é ilegal em muitos sítios, o que pensa sobre os “tags”, os “bombings” , os “trains” e outras manifestações grafiteiras que utilizam a propriedade privada (em alguns casos com valor patrimonial) como suporte?

ACP — Sou contra. Defendo a repressão desta forma de terrorismo débil.

Arqa— Que relação se pode estabelecer entre a “street art” e a arquitectura? Existe alguma hipótese de colaboração entre estas duas disciplinas, ou acha que a “street art” é uma expressão autónoma, não compatível com normal perenidade da arquitectura?

ACP — Também há street architecture...

Arqa — A cidade é, podemos dizer, um poderoso meio de comunicação. Que futuro antevê para a “street art”? Continuará a ser um fenómeno urbano?

ACP — A street art veio para ficar e crescer. Um dia acabará por ocupar o espaço reservado às elites urbanas.


Nota: este texto foi originariamente publicado na revista Arqa nº 129 (2018).

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