quarta-feira, 2 de março de 2016

Lamas saneado do CCB



Já nem cuidam da forma


Texto corajoso e indispensável de Raquel Henriques da Silva sobre a tomada de assalto de um pobre ministério, o da Cultura — hoje com menos 44 milhões de euros do que no tempo da tão vilipendiada Secretaria de Estado da Cultura dirigida por Jorge Barreto Xavier.

Menos mal que o Bloco de Esquerda sentiu este abuso de poder como o que foi e é: um abuso de poder descarado. Veremos o que sairá deste abcesso partidário de seita.

Direito à indignação 
RAQUEL HENRIQUES DA SILVA 
Público, 29/02/2016 - 01:15
Decidi tomar posição para exprimir a minha profunda indignação pelo modo como António Lamas tem sido enxovalhado.
Por estes dias, tenho estado na expectativa de que a discussão do orçamento de Estado pudesse ser momento adequado para que o Ministro da Cultura (MC) enunciasse as linhas mestras da estratégia política para um sector que, há mais de uma década, não tem linha de rumo consistente. 
[...]
Compensando a ausência do que mais interessaria, o MC tem-se desdobrado em declarações sobre dois tópicos, especialmente mediáticos: a decisão “incontornável” de que “os Mirós” vão ficar em Portugal e a extinção da Estrutura de Projecto para a gestão conjunta do eixo Belém-Ajuda. Neste caso, foi-se percebendo que o MC visou também (ou sobretudo?) afastar António Lamas da direcção do CCB, para ser substituído por “alguém com experiência, bastante mais jovem, com provas dadas, nomeadamente ao nível de responsabilidades públicas num ministério” (Público on line 26 Fev.). Já antes, o Ministro se referira a Lamas como “alguém que não tem legitimidade democrática, que é metido por razões disto ou daquilo” (Expresso, 20 de Fev.).
É com desgosto que refiro este linguajar trauliteiro, infeliz num ministro da nação e, mais, naturalmente, no Ministro da Cultura. Não pretendo neste momento pronunciar-me sobra a extinção da Estrutura de Projecto e sei que, em caso de conflito de personalidades como é o caso, um Ministro dispõe de legitimidade de demitir. Mas decidi tomar posição para exprimir a minha profunda indignação pelo modo como António Lamas tem sido enxovalhado, fazendo tábua rasa do facto incontornável de ele ser um dos mais brilhantes e dedicados gestores culturais em Portugal a que o nosso património muito deve.
Gostaria de perguntar ao MC (que tanto apreciou o Museu Grão Vasco, modernizado pelo arq. Eduardo Souto Moura) se ele sabe que foi António Lamas (sendo Secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia) que, no final dos anos de 1980, delineou e pôs em movimento a modernização não só do Museu Grão Vasco mas do Museu Soares dos Reis, do Museu de Aveiro, do Museu de Évora, do Museu do Abade Baçal, do Museu Nacional de Arte Contemporânea, convidando para o efeito arquitectos como Fernando Távora, Alcino Soutinho, Hestnes Ferreira, António Portugal e Manuel Maria Reis e Jean Michel Wilmotte, abrindo assim o mais extraordinário período de obras de requalificação dos museus portugueses de todo o século XX. Que envolveu (saberá o Ministro?) o projecto do próprio CCB que nunca existiria sem o rasgo e a determinação do então Presidente do IPPC que tantos contestaram como inútil e faraónica obra que escondia a cenografia estadonovista dos Jerónimos!
Mais recentemente, antes de chegar à direcção do CCB, Lamas foi (saberá o Ministro?) presidente da empresa Parques de Sintra, Monte da Lua que, sob a sua direcção, passou de um organismo inútil (estou a ser benevolente) para a mais inovadora experiência de gestão cultural em Portugal, traduzida em factos: a valorização do Castelo dos Mouros e envolvente, a renovação museológica e museográfica do Palácio da Pena, o restauro integral do Palácio de Monserrate e do Chalet da Condessa de Edla, a aquisição de novas propriedades, o restauro e renovação dos jardins, matas e florestas. Não pense o Ministro (ou os eventuais leitores) que exagero: basta ir e fruir o estado presente daquele património notabilíssimo. E se os proventos das bilheteiras e das lojas galoparam, em função de exponencial crescimento dos públicos, não é possível, como pretenderam alguns, falar de opções mercantilistas: nunca, como a partir de António Lamas, aquele património foi estudado, conservado, ampliado e valorizado.
A minha indignação assenta, portanto, na inaceitável atitude de um recém-chegado Ministro que ainda não provou nada, para com um homem que, há mais de trinta anos, vem servindo com raro brilhantismo e respeito pela coisa pública, o património português. Esta notável herança tem de ser considerada e, mais propositivamente, seria, para qualquer político avisado, um repto para pensar o futuro. Porque, não tenha qualquer dúvida o Ministro, e a estranha equipa que o rodeia, que urge ter ideias, estratégias e linhas de acção, aproveitando, com projectos complexos, inovadores e fundamentados, as parcerias que o Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior tem vindo a propor, neste caso com uma consistência que nos enche de esperança.

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