domingo, 6 de julho de 2014

Nota sobre Pires Vieira

Pires Vieira
Sem título, 1975
madeira, pedra, corda, 300 x 300 cm
Col. Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea,  Porto

Uma cicatriz na abstração portuguesa

Por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Cronologia: Jackson Pollock (1942, 1943); Gutaï (1956); Giulio Paolini (1960), arte minimal (Richard Wollheim, 1965); Arte Povera (Germano Celant, 1967), Supports/Surfaces (1966, 1969 - 1972), Pires Vieira (1969)

A minha divagação de ontem na Fundação Carmona e Costa sobre a obra, em contexto, de Victor Pires Vieira, pareceu talvez passar ao lado das peças expostas na fundação e no Museu do Chiado, na medida em que me escudei nos textos de Adelaide Ginga para não me pronunciar diretamente sobre qualquer das peças salvo a 'escultura' no chão, com sulipas, granito e corda, sem título, de 1975 — um dos mais fortes vínculos na obra de Pires Vieira à tendência 'estruturalista' da vanguarda artística francesa pós-Maio de 68.

Na realidade, o que fiz foi situar a biografia e génese convulsiva das 'estruturas', ou elementos da representação e posição da arte, numa dificuldade lusitana e europeia mais geral, que descrevi como um isolamento ideológico e cultural da tendência para a abstração na arte moderna nos países europeus em geral, e nos da Contra-Reforma, nomeadamente Portugal e Espanha, em particular. Paris, depois de ter dado origem à arte moderna republicana, quedou-se num sincretismo próprio do entroncamento cultural que foi durante todo o século 19 e quase metade do século 20. O caso do Brasil, que deve ser visto com minúcia, liberta-se de alguns dos constrangimentos europeus e católicos pela especificidade frequentemente animista da reinterpretação do paganismo católico português que o sincretismo religioso brasileiro permitiu durante séculos de colonialismo, confluência étnica e babélia —o famoso 'concretismo'. Mas o Portugal moderno e contemporâneo, entalado entre o realismo das aldeias e dos subúrbios urbanos, dos presépios polícromos, dos paramentos e andores das igrejas apostólicas romanas, da tralha decorativa importada pelos palácios a que uma tradição barroca sem estrutura, nem forma, mas sempre superficial, obediente e tosca deu legitimidade e academia, a que se viria somar, em perfeita continuidade cultural, o realismo ideológico autoritário do fascismo e do estalinismo, deixou apenas uma nesga de oportunidade à 'abstração' libertadora da arte moderna e contemporânea que verdadeiramente foi transformando a arte numa praxis autónoma — sem censura, nem dono.

Neste sentido, a 'arte abstrata' portuguesa, sempre acossada pelos dogmas, da Santíssima Trindade, ou da degenerescência leninista-estalinista, submersa pela importância enfatuada e imposta do nosso neo-realismo e do nosso surrealismo, pindéricos, mas autoritários, viu-se quase sempre compungida a explicar-se no campo retórico que não era seu e que deveria, aliás, começar por rejeitar. As cicatrizes desta prisão cultural aparecem na obra de Pires Vieira, como são claramente visíveis em todos os outros abstratos portugueses: Vieira da Silva, Nadir, Lanhas, Ângelo, Batarda, Casimiro, João Vieira, Jorge Martins, Menez, Vítor Pomar, Calhau, Palolo, José Carvalho, José Conduto, Croft ou Casqueiro. De certo modo, o que ontem disse a propósito da obra de Pires Vieira, foi um preâmbulo à análise desta cicatriz.

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