sexta-feira, 11 de julho de 2014

Conceito Zero

Antonio Cerveira Pinto
No concept, Central Station, 2014
Phenomenologies (painting)

A Luz Zen de António Cerveira Pinto

Por EMANUEL DIMAS DE MELO PIMENTA


Entramos na sala da exposição e há luz.

Trata-se de uma sala quase antiga, quase abandonada, quase envelhecida, quase quieta. Um pouco como somos sempre todos nós.

Directamente sobre as paredes, dezanove quadrados pintados em branco.

São espécies de aberturas para uma outra dimensão temporal.

A patina é a da mão, quase disfarçados movimentos, quase sombra do corpo - aura.

Um outro tempo, outra vida - pois tudo se transforma permanentemente na apoptose.

Os dezanove quadros de António Cerveira Pinto "apagam" o tempo que transformou aquele espaço, aquele edifício. Elaboram o tempo-zero, tempo antes da metamorfose, do envelhecimento, da mutação do metabolismo, da vida.

Restauram a condição zero daquele lugar, antes mesmo de o lugar existir como tal.

Grau zero da escritura.

Condição que nos remete imediatamente a Roland Barthes e especialmente a Albert Camus, agora já não mais como estrangeiro: "O arco se verga, a madeira geme. No auge da tensão, levantará voo, em linha recta, mais directa e mais livre flecha".

Mas, essa ainda não é a obra. É apenas parte dela. Uma das suas dimensões.

Quando o espaço já estava envelhecido, transformado, nesse misterioso início de tudo, ponto-zero, presente eterno de Agostinho, António Cerveira Pinto foi ao lugar e fotografou a luz, numa espécie de processo em retroalimentação: dezanove (foto)grafias, escrituras de luz sobre a luz.

Esquecemo-nos por vezes de que a luz viaja numa única velocidade na qual, em termos físicos, o tempo simplesmente não pode existir.

Portanto, estamos permanentemente mergulhados no não-tempo. Tudo o que nos circunda e nos preenche é a ausência de tempo.

Raios de sol, sombras, janela. A luz foi então transformada num outro tipo de luz, escritura sem tempo, e essa mesma luz foi uma vez mais metamorfoseada, agora revelada em números, abstracção pura, desmaterialização radical, tornada digital e implantada no ciberespaço: espaço numa outra dimensão mental.

Luz na desmaterialização da cultura material.

Tudo mudou novamente.

Na sala, tal como acontece no labiríntico especular ciberespaço, restam as aberturas para uma luz que não mais existe. Tempo-zero. Ideia no processo, não-conteúdo verbal, não-conceito simbólico, estrutura de movimentos, de acção pura.

Pensamento-acção.

O título da peça, datada de 2014, é No concept, Central Station. Mostra que aconteceu - na sua première - na Central Station, em Lisboa, naquele mesmo ano.

Muito do sentido da dimensão ciberespacial - ao contrário do que geralmente se acredita - é revelado pela raiz etimológica nas palavras Gregas kubernân e kubernêtês - respectivamente "governar" e "pilotar".

O espaço que nos governa, que nos orienta, que nos dirige. Estrutura da acção do pensamento.

Parte da obra está no estabelecimento dessa estranha dimensão entre dimensões, qualidade da qualidade.

Entretanto, tudo isso ainda não é a obra na sua totalidade.

Ela apenas o será quando uma nova, enigmática e indeterminada dimensão emerge: a de não se saber com precisão acerca dessas múltiplas dimensões. Um tal saber implica tempo, que se agregue ao tempo-zero, e que seja descoberta.

Mais importante, não se sabe a priori da dimensão ciberespacial.

Sabe-se de tudo isso um pouco por acaso, pelo risco, por um lance de dados, através da reflexão, da contemplação, da busca. E quando se sabe, procura-se ainda mais. Então, lâmina a lâmina, dimensão a dimensão, a obra é revelada.

É essa misteriosa condição da descoberta, imprevisível e indeterminada, que dá corpo imaterial à obra.

Assim, No concept, Central Station de António Cerveira Pinto é de natureza matemática e profundamente religiosa.

A palavra religião possui duas raízes, ou referências, etimológicas. A primeira, mais antiga, é a expressão latina religare, intensamente usada especialmente durante o Império Romano, há cerca de dois mil anos. A segunda é relegere, palavra igualmente latina, mas usada nos mosteiros medievais, particularmente durante o período dos Grandes Sistemas, já no final do universo medieval.

Enquanto que a primeira expressão latina designa o acto de "religar", de ligar novamente, isto é, de re-estabelecer uma associação que se tinha perdido, uma memória, uma ideia - pois o significado de um signo é outro signo de natureza diferente - e, portanto, está intimamente relacionada à ideia de descobrimento, de revelação; relegere implica trabalho, método, elaboração, participação, atenção.

Ambas as expressões aspiram ao sagrado - que é a condição expressa pela poesia, isto é, aspiração ao tempo livre, como quando entramos num espaço e nele mergulhamos em silenciosa contemplação.

Assim, a obra de António Cerveira Pinto é não apenas profundamente religiosa, exigindo uma permanente acção à descoberta, mas também é essencialmente política, incorporando nas suas origens a essência participativa do "governo", da "orientação".

São sentidos ocultos, não-verbais, presentes como processo, metabolismo.

E aqui, naturalmente, a ideia de governo não acontece como forma partidária, exclusiva, ditatorial, sectária - como um clube de protegidos ou uma religião no seu sentido institucional - mas sim enquanto governo íntimo, pessoal, livre, inclusivo, anárquico.

Não podemos nos esquecer de que política nasce com a polis e é, assim, na sua mais profunda essência, a livre interacção entre pessoas, entre ideias na aspiração a novas ideias, num contínuo mergulho pela descoberta de cada um de nós e de todos.

Essa experiência política e religiosa traz à mente uma afirmação de Chên-ching K'ê-wên, que viveu entre 1024 e 1102: "Naquilo que diz respeito ao Zen, a experiência é tudo em todos. Qualquer coisa que não esteja baseada na experiência está fora do Zen. O estudo do Zen, portanto, deve crescer com a própria vida; e a iluminação deve ser profundamente penetrante".

2014

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