quarta-feira, 27 de novembro de 2013

António de Maria

A mãe, Maria, o Pai, António, e o filho, António Maria
Anotações na foto: "Dezembro 1953/ Miúdo tremido/ Prova regeitada"

por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Um amigo enganou-se na data e resolveu enviar-me uma mensagem de parabéns no dia anterior ao aniversário. Como a saudação foi também enviada para uma lista de correio, aconteceu algo para mim inédito: sucessivos mensagens de felicitações antes do dia sagrado. Até a minha filha, que viveu em Madrid os últimos quinze anos, e parte amanhã para Bruxelas, me telefonou dando os parabéns, uma hora antes do dia 27, esquecendo-se que em Madrid se vive sessenta minutos à frente de Lisboa. Fartámo-nos de rir na conversa Skype sobre o tema.

Este episódio insólito levou-me a reparar numa circunstância ainda mais insólita: há décadas que comemoro o meu aniversário com oito horas de atraso sem nunca me ter dado conta disso. Nasci em Macau, junto às ruínas de São Paulo, a 27 de novembro de 1952, às duas e meia da tarde. Os pais eram lindos, e eu ainda sou ;) Ao acordar neste meu dia de anos vivi um sonho renitente. Tinha deixado o meu boné no vestiário de um grande edifício, onde entrava e de onde saía muita gente, e quando o quis recuperar, não apareceu. Havia centenas de bonés, e eu podia, na realidade, ter levado qualquer um, e havia-os de todas as cores e feitios, alguns novinhos em folha, outros com marcas caríssimas. Mas eu queria o meu boné. Tentava lembrar-me de todas as suas características, descrevendo-as às meninas e aos rapazes que atendiam as pessoas apressadas como eu. Mas nada, não aparecia. Acabei por acordar. Voltei ao sono e o mesmo sonho regressou. Circulavam então diante do vestiário empregados com carrinhos transportando todo o tipo de roupa, bonés incluídos, e até o meu robe de feltro branco! Mas o meu boné, nada...

A manhã nasceu gelada, meti-me no duche quente e organizei, como sempre faço, o dia que iria ter.

A Cândida deu-me um beijinho de parabéns. Decidimos que não iríamos almoçar fora, que eu prepararia um belo peixe assado acompanhado do espumante bruto da Cartuxa, 2009. Esprememos laranjas de inverno, azedas como eu gosto, torrámos pão, e preparámos o café. Corrijo: a Cândida preparou o pequeno almoço e trouxe o café para a mesa inundada de Sol, como quase sempre faz. Apesar do frio de rachar, o Deus da luz inundou a casa como sabe que adoro, sem cerimónias. Liguei o computador e a Cândida ofereceu-me, com os cuidados prévios do costume —que se não gostasse poderia trocar, que tinha o recibo, que..., que achava que eu iria gostar... do livro de Isabel Stilwell sobre uma das minhas heroínas: a Rainha Filipa de Lencastre, inglesa e mãe de uma geração de portugueses educados como raramente vimos na nossa História. Abracei-a e ganhei o dia naquele momento.

Antes de sairmos, já o meio dia ia bem alto, para comprar o peixe fresco, ressurgiu a pequena aflição sobre o frio lá fora. Não sei porquê, levara para o nosso apartamento no Porto todos os agasalhos de inverno. Calculei, mal, que passaria boa parte do tempo lá para o Norte, em vez de continuar as minhas rotinas pelo Sul. E o meu querido sobretudo felpudo do Adolfo Domínguez tinha-o deixado há meses em casa do Pedro, meu querido amigo do liceu D. Manuel II. Como nunca mais cumpri a promessa de o trazer até nossa casa para almoçarmos juntos, o castigo aí estava: fazia frio lá fora, e eu estava sem abrigo!

Haveria algum anorak no guarda roupa da garagem, ou foram todos para o Porto, perguntava-me a Cândida. Não sei, vou espreitar.

Dentro de uma protetora capa de PVC azul escuro lá estava um esplêndido e por estrear 'Outdoor Wear' herdado do meu pai, e de que não tinha já a menor lembrança. Desde que a minha mãe partiu, e o meu pai foi ter com ela, que a presença de ambos se foi tornando cada vez mais viva. Um leve sentimento de culpa perpassa por vezes estas memórias. Sinto-me hoje muito mais perto do pai do que quando este era vivo e com ele mantinha divergências ideológicas permanentes e ambos cultivávamos silêncios que soavam como tratados. Ele foi um militar íntegro, e viu tudo. Nunca vi ninguém suportar a dor como ele. Era evidente que seria eu, o filho mais velho, crítico, irrequieto, que dois dias antes discutira com ele por uma carta estúpida vinda da aldeia, quem ele veria pela última vez antes de ser entregue a uma médica galega aflita no Hospital Militar Principal, onde morreria uma hora de agonia depois.

A Patrícia, minha filha, deu-me, a mim e à Cândida, uma grande felicidade ao ter ganho, por mérito exclusivamente próprio, há pouco mais de um mês, um difícil concurso de acesso a um posto de trabalho numa grande empresa de consultoria em Bruxelas. A Cândida ofereceu-me um livro magnífico. E o meu pai protegeu-me do frio quando menos esperava.

Que dia!

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

TOYZE

TOYZE — Maputo, 2013

Estes gémeos não são idênticos
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

«(...) algumas características dos gémeos tornam-se mais semelhantes com a idade, tais como o QI e a personalidade». [Wikipédia]

António Salvador Carvalho e António José Carvalho são gémeos idênticos, conhecidos por amigos próximos como Tó (o gémeo mais velho) e Zé (o mais novo). TOYZE é uma tentativa recente para fundir os dois irmãos num único autor e assinatura, e pode ser vista como um heterónimo, ou antes, como mais uma tentativa de alcançar o impossível regresso ou reconstituição da identidade perdida à nascença. Zé, neste momento, é a metade mais activa de TOYZE, autor de RI-TE!, um trabalho em andamento cujo foco é o meta-mundo dos emoticons. Tó encontra-se actualmente na China, perto de Xangai, a desenvolver um estúdio 3-D.

Tó, o gémeo mais velho, aproxima-se da representação como um tecido complexo de desenhos, rasuras, sobreposições, contornos, esboços, camadas, até que a imagem final apareça como resultado de mais uma batalha entre os artefactos, as tecnologias, as personagens e os fantasmas da sua fábrica de imaginações convulsivas.

Zé, o gémeo mais novo, usa a mão como um elo elegante e quase invisível para um fluxo condensado e ininterrupto de imagens sintécticas e narrativas que correm em direcção a qualquer branco disponível. A ausência de fundos nas suas figurações extraordinárias prenuncia um potencial expansionista e escultórico, a capacidade de migração para o espaço tridimensional e uma materialização iminente nos mais inesperados materiais. Alguns artistas e estilos tiveram uma grande influência na sua obra: Jacinto Pereira da Costa, um artista manuelino que pintou a Sala dos Capelos na Universidade Coimbra, Walt Disney, mas acima de tudo, o italiano Jacovitti, autor do herói de banda desenhada Jak Mandolino, assim como o artista japonês de manga, ilustrador e pintor, Suehiro Maruo.

Estes gémeos são autores prodigiosos, assumindo influências vagas de Goya, das “gravuras do mundo flutuante” (U-kyoe), da Manga, do Anime e das aventuras japonesas pós-pop em geral, de onde podemos destacar autores como Chiho Aoshima, Henmaru Machino, Aya Takano, Bome, Enlightenment (Hiro Sugiyama), ou um artista tão sofisticado quanto Takashi Murakami, e até mesmo os estilos ameríndios e as máscaras africanas. Erotismo, para não dizer porno anamórfico e figuração radical, comentários sobre a cultura quotidiana, marcam uma atitude niilista, nomeadamente face à “arte contemporânea” e à ladainha “conceptual” horrenda que inundou e quase sufocou centenas de escolas superiores e a chamada “conversa” da arte. Eles opõem a este lixo intelectual e pompier a teknné que nenhuma arte verdadeira alguma vez dispensou como propriedade que a distingue.

TOYZE não acompanha a corrente e não obedece às pequenas burocracias da vanguarda institucional. Tal atitude significa uma completa falta de carreirismo. Estes dois artistas desconhecem, tanto como duas borboletas numa manhã de primavera sobrevoando as estevas, os meandros do mercado da arte, dos museus, das bienais e dos críticos de arte.

Tant pis pour eux! Ou tant pis pour nous?

Ri-te!

O livro Red Label publicado pela Stolen Books é uma versão digital a duas cores de um projeto maior chamado “Ri-te” (originalmente, A smile a day) — 365 rostos e máscaras que riem. Os ‘emoticons’ que usamos quase todos os dias nos nossos e-mails, SMS e publicações online em geral, inspiraram estas imagens. São desenhos poderosos e coloridos que nascem de pequenos esboços (doodles) em cadernos de apontamentos durante reuniões pedagógicas a que Zé assiste regularmente, capturando os humores do artista e o zeitgeist político e cultural que nos rodeia.

Estamos a viver de novo um tempo de rápidas mudanças. Tal como na arte urbana (street art), estes risos e esgares capturam a mesma urgente e nada convencional literacia visual da escrita sobre paredes. Eles são, essencialmente, um discurso radical.

Como meta-desenhos digitais, estas máscaras, no seu formato vectorial, funcionam ao mesmo tempo como moldes ou potências de identidades futuras.

Como TOYZE (Zé) explica, não há intencionalmente fundo nestas imagens. Elas podem evoluir para autocolantes para skates e pranchas de surf ou de bodyboard, para T-shirts, ou para educadas pinturas domésticas e até de museu, ou mesmo expandirem-se por grandes murais. Estas imagens esperam também por transformações 3D, a realizar pelo seu irmão TOYZE (Tó), possivelmente para enformar futuras esculturas, gerar animações e desenvolver complexos projetos de animatronics. Curiosamente, estes bonecos nascidos da distração são máquinas de arte conceptualmente elaboradas.

Lisboa, outubro / novembro 2013

TOYZERi-te !

—trinta ‘pieces’ e uma pintura mural

Projeto curatorial: Olho por olho, mente por mente — de António Cerveira Pinto

Inauguração: Quinta-Feira, Nov 21, 2013 (18:00-21:00)
Até: Sábado, 4 de janeiro de 2014

Conversas à volta da mesa, apresentadas por Luís Serpa, com António Cerveira Pinto e TOYZE | Terça-Feira, dia 3 de dezembro, 18:30-20:30 | Leitmotiv: A via das máscaras, segundo Claude Lévi-Strauss, à luz de um par de gémeos (um deles ausente?) e a replicação eletrónica da personalidad.
@ Galeria Luís Serpa Projectos
Rua Tenente Raul Cascais—1B, Lisboa | TLM: (+351) 964 028 807 (Google Maps)

Not identical twins
By ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

    “… certain characteristics become more alike as twins age, such as IQ and personality” — Wikipedia.

António Salvador Carvalho and António José Carvalho are identical twins, or MZ twins, known by close friends as Tó (the older twin - and for the purpose of this writing called T) and Zé (the younger one, Z). TOYZE is a recent trial to fuse both siblings into a single author and signature. It is a tentative third fictional author looking for an impossible dream: complete identity bioengineering. In the context of this project, Z is the most active half of TOYZE and the one responsible for “A smile a day”. This is a work-in-progress around the new meta world of meaning and communication known as comics, street art, toys or, as they like to call it, ‘bonecos’. T is presently in China developing a 3D studio.

T, the older twin, approaches representation as a complex fabric of drawings, erasures, superimposed images, layering sketches after sketches until a last picture come along as a result of a hand battle with the many artifacts, characters and ghosts of his convulsive imagination factory.

Z, the younger twin, not a perfect clone of T, uses his hand as an almost invisible link to what appears as an uninterrupted flow of synthetic imagery, and highly condensate visual narratives that run toward any void available. Some artists and styles have had a great influence on his work: Jacinto Pereira da Costa (a late Renaissance Portuguese artist that painted Sala dos Capelos inside the old Coimbra University building), Walt Disney and comic books in general, but above all the Italian comic artist Jacovitti, author of Jak Mandolino character, as well as the Japanese manga artist, illustrator, and painter, Suehiro Maruo.

Both these twins are prodigious draftsmen, running vague influences from Goya to ‘U-kyoe’ and Manga, Anime and post-Pop adventures like the ones by Japanese artists and collectives like Chiho Aoshima, Henmaru Machino, Aya Takano, Bome, Enlightenment (Hiro Sugiyama), or smart artists like Takashi Murakami, or even Amerindian as well as African folk art.

Eroticism not to say some Porn morphs and radical comments on culture make a clear point as their nihilist attitude towards ‘contemporary art’ and the horrendous conceptual litany that took over hundreds of art schools and the so-called ‘conversation’ of art.

They oppose to this new academia and to this all-over enforced concept art a back to basic deviation. They insist in a wild ‘teknné’, that’s what they do.

For TOYZE not to go with the trend and not to obey the new bureaucratic avant-garde establishment means a complete lack of rampant ambition. These two artists couldn’t careless more about art dealers, museums, ‘biennales’ and art critics than two butterflies running wild in a green field on a Spring sunny morning. Tant pis pour eux! Or tant pis pour nous?

A smile a day

The artist's book —Red Label— is a two color version of a larger project called “A smile a day”, 365 digital smiling faces and masks. Emoticons that we use almost everyday in our emails, SMS and online posting at large, inspired these pictures. These powerful and colorful drawings done by Z on a daily basis, capture the moods of the artist and the political and cultural zeitgeist around us. We are living again in fast changing times. As in street art, these smiles capture the same urgent non-conventional literacy of wall writing. They are essentially radical stuff.

As digital meta-drawings, these masks work like moulds for future entities.

As Toyze (Z) explains, there is no background on purpose. They can evolve to skateboards and surf boards stickers, T-shirts, educated home or museum paintings, or expand to a big wall of fame. These pictures also wait for his brother’s transformations into 3D prints, sculptures, movie animations and animatronics. Curiously enough these are very conceptually and elaborate art machines.

Lisbon, November, 2013.