domingo, 13 de maio de 2012

O artista sem qualidades

Hegel retratado por Schlesinger

Fernanda Maio e a deriva populista e burocrática da arte nas sociedades do Capitalismo tardio
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

"A presença da arte em espaços públicos, através da presença do artista, serve muitas vezes para colmatar a ausência de uma intervenção política efectiva. Dessa forma, a promessa da colaboração das pessoas num empreendimento criativo substitui o diálogo realmente democrático."

in Fernanda Maio, A Encenação da Arte (2004, 2011), p.245

O livro A Encenação da Arte (2004, 2011), de Fernanda Maio (1968), que acabo de ler em Português, resulta da sua tese de doutoramento realizada no Goldsmiths College, de Londres, em 2004. É um estudo fundamentado e impiedoso sobre a miséria da arte na fase tardia, populista e burocrática das democracias capitalistas ocidentais. Na realidade, o livro poderia levar um de dois subtítulos: da arte moderna à arte burocrática nas democracias capitalistas ocidentais, ou, para ser mais  curto e incisivo, do fim da modernidade ao artista sem qualidades.

O estado de indigência da arte produzida no âmbito protegido e ao mesmo tempo manipulado e instrumentalizado do dito Estado Social é uma consequência paradoxal do declínio deste último.

Desde a década de 1970, sobretudo depois da primeira grande crise petrolífera e da constatação do Pico do Petróleo nos Estados Unidos, que os países capitalistas se viram na contingência de trocar o antigo colonialismo focado na exploração das matérias-primas fundamentais existentes no chamado "terceiro mundo", por um mal-disfarçado neocolonialismo, cujos pressupostos foram, por um lado, a promoção da independência política das colónias europeias que ainda subsistiam nas décadas de 1950, 1960, 1970, e por outro,  a formalização democrática (sobretudo depois de 1990) dos povos colonizados pelo Ocidente desde o início do século XV (Ceuta, 1415). Esta nova colonização sofisticada, igualmente agressiva, tem sido mediada por supostos poderes soberanos que, na realidade, não deixaram nunca de ser, até à emergência da China, a partir da década de 1990, instrumentos imperiais de exploração e domínio. A novidade do neocolonialismo é esta: para lá das matérias primas preciosas a extrair dos territórios de soberania formal, o Ocidente capitalista desenvolvido precisava agora de somar à extracção barata dos recursos materiais das antigas colónias, a exploração de um outro recurso que no Ocidente começava a escassear e era em todo o caso cada vez mais caro: o trabalho!

A economia de serviços não produz nem batatas, nem automóveis, nem telemóveis. Limita-se a criar e desenvolver conceitos e ideais de não-trabalho. No limite, tentou imaginar, desejar e tanto quanto foi capaz implementar uma civilização de consumo e prazer. Centenas de milhões de camponeses abandonaram os campos para, num primeiro ciclo, trabalharem nas cinturas fabris que rodearam as antigas cidades de origem burguesa e comercial. Depois de as fábricas começarem a emigrar para a América Latina e Ásia, os subúrbios industriais e novas periferias sucessivamente conquistadas ao campo deram lugar ao crescimento suburbano das chamadas metrópoles, onde os antigos operários substituíram os martelos e os tornos por secretárias e telefones. Em apenas dois séculos o homem europeu (na Europa e na América) deixou de produzir alimentos e utensílios com as suas próprias mãos, entregando tais tarefas às máquinas, aos autómatos e aos novos sobre-explorados da América Latina, de África e da Ásia — que respondem, aliás, por mais de 5/6 da população mundial.

A tecnologia e o novo-mundo, pelo melhor preço e nenhuma ou fraca resistência política ou social à exploração, atraíram "naturalmente" o capital, deixando atrás de si um exército crescente de desempregados e uma escassez crescente e sistémica de emprego. A solução paliativa encontrada pelos poderes demo-populistas ocidentais para este enorme problema foi, desde o início da década de 1970 até à crise de endividamento público e privado em que os chamados países desenvolvidos estão imersos desde 2008, a criação de emprego fictício, cada vez mais burocracia, e o financiamento do consumo pelo endividamento. A monetarização necessária para cumprir este objetivo em última instância suicida assentou numa economia de casino, puramente especulativa e virtual. Um tal castelo de cartas teria que inevitavelmente sucumbir à pressão conjunta da progressiva mas inexorável escassez de energia barata, de matérias primas industriais, de água e de bens alimentares suficientes para uma demografia em crescimento exponencial.

O Estado Social, que começara por ser, no tempo em que o conservador Otto von Bismarck (1815-1898) o lançou (1881), uma estratégia para apaziguar os movimentos operários revolucionários e para, ao mesmo tempo, aumentar a competitividade do novo "império alemão" face aos desafios da América, onde o trabalho era mais bem pago do que na Europa, foi-se degradando a partir do momento em que se transformou numa rede social alargada para proteger da indigência uma população sem empregos produtivos que não pára de aumentar desde a crise petrolífera de 1973.

Assim, e para além dos serviços tradicionalmente prestados pelo Estado Social nos seguros contra acidentes de trabalho, na assistência à doença, no subsídio do desemprego, na educação e na jubilação dos que chegam ao fim de uma vida longa de trabalho, fomos assistindo ao longo das últimas quatro décadas a uma verdadeira hipertrofia burocrática dos países desenvolvidos, do Japão aos Estados Unidos, passando obviamente pela Europa. Para suprir os efeitos mais nefastos da maciça destruição do emprego produtivo ao longo destas décadas, os governos demo-populistas foram levados, todos eles, a aumentar o gasto público sob a forma de investimento em redes públicas e semi-públicas de educação permanente e emprego social, mas também sob a forma de criação de liquidez financeira orientada para o consumo. O crescimento tornou-se desta maneira um verdadeiro embuste estatístico e uma miragem de progresso atrás da qual se escondeu, como agora estamos a constatar, um enorme e árido vazio!

A digressão foi longa, mas é porventura a esta luz, que a dissertação de Fernanda Maio revela a sua tremenda oportunidade crítica.
"Ao concluir o meu estudo estou inteiramente convencida uma prática de que não precisamos de uma arte que desempenhe o papel da política e da regeneração urbana, mas seria bom que tivéssemos uma prática artística verdadeiramente empenhada politicamente. Não considero relevantes os discursos sobre 'arte  democrática' que esvaziam de sentido todo o argumento político. Defendo, em vez disso, uma p´ratica artística eticamente responsável e socialmente comprometida."

in Fernanda Maio, A Encenação da Arte (2004, 2011), p.247

A arte característica do período de apogeu e declínio do Estado Social durou o que durou este declínio, denotando na esmagadora maioria dos casos e ao longo da sua breve existência um sobrevoo superficial sobre disciplinas alheias e uma ética quase sempre oportunista. Condenada pela pressão dos subsídios a procurar as comunidades que pela via fiscal os subsidiam, a verdade é que ficaram e continuam a ficar quase sempre muito longe das audiências e dos públicos pretendidos. Nunca puderam nem podem competir com a televisão, nem com o cinema, nem sequer com os espectáculos musicais, ocorram estes nos grandes festivais ou na rede capilar dos bares e discotecas que acolhe por esse mundo fora os celebrados DJs e VJs. Há um tremendo fracasso na arte dita conceptual e post-conceptual: nem foi tomada a sério pela Teoria, nem amada pela prole urbana e suburbana da cultura Pop.

Isto, a arte comercial sofisticada e especulativa do complexo galerístico-museológico, ou o consumo espetacular de uma cultura assente na produção e consumo de estímulos estéticos e ideológicos superficiais parecem pois dar uma vez mais razão ao pessimismo de Hegel (1770-1831) sobre a sobrevivência da arte como domínio espiritual autónomo da humanidade.

E no entanto existem imagens, palavras e vozes que na sua inexplicável perenidade e capacidade de nos comover contradizem o fatalismo do negativismo filosófico em que estamos fechados há pelo menos dois séculos. Talvez regressando a John Dewey (1859-1952) e ao estudo da "experiência estética" possamos reconstituir os caminhos genuínos de legitimidade e autonomia da técnica, da tecnologia e do estudo (τέχνη) que alicerçam o grande edifício das artes.

Copyright © 2012 by António Cerveira Pinto