sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Joana Vasconcelos - Marylin Inox

Joana Vasconcelos, a pós-vanguarda no feminino
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO


Joana Vasconcelos—Marylin, Museu Berardo, CCB ©Foto: Filipa Figueira, 2010.
“Marilyn”, da artista portuguesa Joana Vasconcelos (n. 1971), foi leiloada hoje na casa Christie’s por 505.250 libras (573.964 euros). No leilão de arte do pós-guerra e contemporânea, onde se encontram obras de Gilbert & George, Andy Warhol ou Roy Lichtenstein, a base de licitação da peça, um par de sapatos gigantes realizados com panelas e tampas, era de 100 mil a 150 mil libras (115 mil a 172 mil euros). — Público online.

Lembro-me de ter visto pela primeira vez um dos sapatos de “Marylin”, feito com tachos inox, numa feira comercial dedicada ao imobiliário e soluções para arquitectura, jardins e intervenção urbana. O grande sapato reluzente de ponta alta surgiu-me de chofre, sem passar sequer pela minha cabeça que haveria por ali escultura, e muito menos uma obra de Joana Vasconcelos. Mas era do que se tratava. Ali estava, irresistível a quem rodeava o enorme sapato e por ali ficava alguns minutos sorrindo e voltando para trás e para a frente, tentando resolver o puzzle. Parecia um sapato de diamantes. Mas não era. Era, sim, um objecto gigante feito com mais de uma centena de tachos inox soldados uns aos outros. Disse para comigo: isto deve ser mais uma partida da Joana. E era!


Joana Vasconcelos foi durante muito tempo, e porventura ainda será, uma artista menos considerada entre as vanguardas de sucedâneo que abundavam na arte portuguesa do final do século passado. Recordo ainda, e agora posso partilhar o momento publicamente, das pressões que em 1999 sofri para não inclui-la na Bienal da Maia que então comissariei na ilusão de poder transformar aquele evento suburbano numa realização periódica com dimensão internacional. Não vou entrar em pormenores, mas no mínimo, dizia-se que a personagem era insistente e trucidante, e a obra, no mínimo, Kitsch (como se este último epíteto pudesse então ser um mau presságio, ou uma nota negativa!)


Eu procurava vislumbrar quais os valores mais promissores da jovem arte portuguesa (e chinesa de Xangai!) naquele final do trágico século 20. Fui abrangente e extensivo, insistindo numa espécie de pedagogia inclusiva e aberta, num terreno que sabia estar já muito minado por jogos de poder, de controlo e de exclusão competitiva. A lista de participantes foi quase exaustiva no que então me pareceram ser hipóteses em aberto que mereciam conviver numa mesma exposição e dar lugar à ideia de que existia uma nova geração de artistas dignos da atenção pública, e da atenção das galerias de arte, dos museus e das revistas da especialidade, mas também das instituições públicas. 

Os anos 90 tiveram pois duas exposições —uma a começar a década, e outra a fechá-la— onde tive a oportunidade de sugerir um arejamento da percepção portuguesa do seu potencial plástico. Nomes como Miguel Palma, Carlos Vidal, João Onofre, João Tabarra, Augusto Alves da Silva, Filipa César, Alexandre Estrela, Francisco Tropa, Jorge Queiroz, Noé Sendas, Rui Toscano, Rui Calçada Bastos e Joana Vasconcelos, entre outros e outras, foram escolhas assumidas para a BM99, quando ainda pesava (ou ainda pesa) uma espécie de monopólio dos oportunistas Anos 80 sobre os centros nevrálgicos do poder das artes em Portugal. O tempo deu razão às escolhas que então fiz e que outros observadores atentos de então também partilhavam, mais ou menos em surdina!


O que porventura distingue a obra de Joana Vasconcelos, e incomoda muita gente, é a sua flagrante frontalidade plástica, franqueza feminina e genuíno espírito do lugar. Tal como Paula Rego, Joana Vasconcelos sabe lidar com o barro da espécie, sem maternalismo, nem sub-capas finas de conceptualismo requentado, nem “liricoidismo” literário (a expressão feliz é de Joaquim Manuel Magalhães) de nenhuma espécie. A bilros o que é de bilros, e que não se confundam com kilts!


E no entanto nada há de atávico ou provinciano na obra de Joana Vasconcelos, como obviamente há, por exemplo, na pintura de Graça Morais. O delírio humorístico e arguto das suas confecções e do seu bricolage é profundamente urbano e sofisticado naquela acepção genuinamente Pop que impregna os percursos de Louise Bourgeois, Paula Rego, Andy Warhol, Jeff Koons, Paul McCarthy e tantos outros e outras. Há uma truculência genial nos temas, nas escalas, nos materiais e nas anedotas da sua extravagante casa de bonecas neurasténicas (ver esta reportagem). E é precisamente esta franqueza narrativa e construtiva que falta em muitos outros artistas cujo potencial não consegue ultrapassar o limiar perigoso da verdadeira liberdade criativa. Joana não é, de facto, nem uma artista epigonal, nem um sucedâneo sem cafeína e politicamente correcto —”para inglês ver”— da última capa da Artforum (ainda existe?) Apetece-me voltar a dar um passeio pelo seu trabalho.

Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto

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