quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Coleccionar búzios

Nassarius kraussianus shell beads from the 75,000 year old levels at Blombos Cave - a) aperture made with bone tool; b) flattened facets produced by use wear, probably by rubbing against other beads, string or gut; c) ochre traces inside shell, possibly transferred from body of wearer d) shell beads external view.
Image created by Chris Henshilwood & Francesco d'Errico (in Wikipedia)

Da arte ao dinheiro

por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Descobri uma coisa interessante num livro excepcional que estou a ler neste momento (Guns, Germs and Steel, de Jared Diamond): os antepassados hominídeos do "homem moderno" andaram por cá há 5 ou mesmo 9 milhões de anos. O "homem moderno", nosso antepassado directo, que poderá ter origem na célebre africana Eva mitocondrial, iniciou a sua longa caminhada há tão só 150 mil anos, e o que do ponto de vista antropológico lhe confere a humanidade plena e o título de Homo sapiens evoluído é —para além de enterrar os mortos e cuidar dos doentes, e fabricar instrumentos normalizados simples ou compostos— o facto de fabricar jóias, i.e. a arte! As primeiras bijouteries que se conhecem são contas feitas com casca de ovo de avestruz, descobertas nas costas Sul e Leste de África. A arte começa pois por ser o resultado privilegiado de uma téchnê, mas ao mesmo tempo —ou pouco tempo depois— transforma-se numa moeda de troca. As contas feitas de casca de ovo de avestruz, de conchas do mar, de carapaça de tartaruga, etc, começando talvez por desempenhar uma função simbólica nos rituais matrimoniais, transformaram-se subsequentemente em objectos-valor, em símbolos e testemunhos de alianças, trocas e comércio — shell-money. Este é aliás o ponto por onde podemos começar a entender a natureza híbrida, simbólica e especulativa da arte, bem como das suas relações com a riqueza, o poder e o amor. Um shot explosivo!

As contas feitas com búzios, encontradas no interior escavado da Caverna de Blombos, na África do Sul, no início deste século, terão qualquer coisa como 75 mil anos. Desde 2002 que vêm sendo estudadas e são consideradas os mais antigos testemunhos de objectos manipulados pelo Homo sapiens com propósitos simbólicos, decorativos e possivelmente económicos (1). Nesta mesma escavação foi encontrado um pedaço de argila com uma banda gravada de losangos cuja idade estimada, 70 mil anos, faz dela a mais antiga representação simbólica que se conhece.

Caverna de Chauvet — pinturas com ~30 mil anos

Os exemplares mais antigos das famosas pinturas e gravuras europeias de Lascaux e Altamira datam de há cerca de 18 mil anos, enquanto o surpreendente catálogo de pinturas e gravuras de animais mansos e agressivos descobertas em 1994 na Caverna de Chauvet (Sul de França), cujas datações ainda decorrem debaixo das controvérsias habituais, aponta para idades mais longínquas, próximas dos 32 mil anos.

A distância temporal entre, por um lado, as primeiras representações simbólicas —abstractas e lineares, mas formando já padrões regulares—, alojadas no mesmo sítio das primeiras formas decorativas —de mera apropriação/colecção/uso— africanas —, encontradas na Caverna de Blombos, e, por outro, as figurações fantásticas do final do Paleolítico Superior é muito grande: pelo menos, 10 mil anos!

Os primitivos hominídeos que evoluíram em direcção ao Homo sapiens terão aparecido à face da Terra há 2,5 ou 2,6 milhões de anos. E é no longo período que decorreu entre 500 mil e 200 mil anos antes da nossa era que o Homo sapiens adquiriu, muito lentamente, um conjunto de habilidades e faculdades mentais capazes de o levar finalmente a iniciar o domínio das estratégias e técnicas da representação simbólica. O salto epistemológico e estético, que Jared Diamonds chama Great Leap Forward, terá ocorrido há uns 50, 60 ou 75 mil anos atrás. Em 1986 investigadores da Universidade da Califórnia defenderam, na sequência de um longo e amplo estudo de arqueologia genética baseado no rastreio do DNA mitocondrial, que a humanidade actual, toda ela, derivaria, não de uma diversidade de famílias de Homo sapiens, mas de apenas uma, localizada em África, e com cerca de 200 mil anos. A chamada Eva mitocondrial será assim a provável mãe primordial de todos nós. Toda a arte conhecida derivará pois, de acordo com esta hipótese científica, das práticas avançadas e porventura tardias desta linhagem africana, de que os artefactos encontrados na caverna de Blombos seriam as primeiras evidências concretas.

Se tudo isto é verdade, podemos talvez reiterar cinco tópicos básicos para a compreensão do fenómeno da arte:
  1. Os primeiros hominídeos, ramo especialmente dotado derivado de uma espécie de macaco (de onde saíram também os antepassados dos gorilas actuais e os antepassados de duas variantes de chimpanzé), nasceram em África à cerca de 7 milhões de anos (entre 5 e 9 milhões de anos, para ser mais preciso); estão muito longe de serem humanos propriamente ditos — não se lhes conhecendo faculdades de representação simbólica, nem de imaginação criativa;
  2. No grupo dos proto-humanos —hominídeos que se endireitaram e viram aumentar a sua capacidade craniana— encontram-se os Australopithecus (3,9 milhões de anos), os Homo habilis (1,5 a 2 milhões de anos), e os Homo erectus (1,8 milhões de anos a 300 mil anos); apesar de usarem instrumentos rudimentares de pedra lascada, não são ainda humanos propriamente ditos — não se lhes conhecendo faculdades de representação simbólica, nem de imaginação criativa;
  3. O chamado "homem moderno" —um Homo sapiens evoluído, com mais de 50 mil anos— caracteriza-se por saber cuidar dos seus doentes, desenvolver rituais funerários, construir ferramentas multi-partes, desenvolver comportamentos de observação sistemática, coleccionar conchas e outros objectos menos duráveis, e ainda por ter sabido especializar capacidades comunicativas e de representação simbólica com resultados evidentes nos vestígios que deixou —nomeadamente as contas de colar de casca de ovo de avestruz (75 000A) e os pedaços de argila gravada encontradas na caverna de Blombos (70 000A) , ou as extraordinárias pinturas da Caverna de Chauvet (32 oooA);
  4. A capacidade de formular representações simbólicas do entendimento e das percepções, e a imaginação criativa em geral, são traços culturais decisivos que separam o homem inteligente e estético dos seus antepassados proto-humanos —sendo mais provável que uma tal evolução tenha resultado de interacções sociais e novos condicionalismos culturais, do que da lenta metamorfose corporal e cerebral da espécie;
  5. Os colares de contas de casca de avestruz, de búzios, de pérolas, de sementes, de vidro, de bauxite, etc., acompanham a história da humanidade desde as suas primeira manifestações artísticas conhecidas até aos dias de hoje —desempenhando simultaneamente funções decorativas, simbólicas e propriamente monetárias, por uma espécie de investimento transversal e multi modal de valor, e de capacidade de atracção universal.
O ponto talvez crucial das observações aqui reunidas que o recente leilão espectacular do L’Homme Qui Marche I de Alberto Giacometti me despertou é essa persistente relação íntima entre o valor material e o valor simbólico associado aos objectos decorativos e simbólicos —frutos de uma clara technê (τέχνη) humana. Não é o trabalho rotineiro acumulado que também existe concentrado na forma de uma obra de arte (seja esta uma "arte menor", puramente decorativa, ou efémera, seja esta uma "arte maior", ou "fina", complexa, polissémica ou alegórica), que potencia o "valor incalculável", verdadeiramente especulativo — no sentido da estrita imprevisibilidade — que a mesma pode atingir em contextos agonísticos especiais, como seja o de um leilão. Há muito mais! Mas o que é? Onde está e o que é esse atractor —certamente no âmago da definição teórica e da génese da obra de arte— que assegura simultaneamente a sua duração e potencia o seu impacto irresistível e universal?
Talvez o segredo esteja no nascimento de um tempo novo, empregue no desenvolvimento de uma parte inexplorada do cérebro durante o longo e duro período em que os hominídeos e proto-humanos deambularam pelo planeta, caçando porventura em tribo, mas sem ter tempo para desenvolver relações sociais complexas e estratagemas de sobrevivência mais sofisticados, à altura da evolução morfológica do corpo (oponibilidade do polegar, deslocação vertical, especialização da visão, crescimento da cavidade cerebral) e da mente (com maior disponibilidade para exercitar algumas das zonas até então adormecidas por uma dedicação exclusiva da vida às tarefas da sobrevivência e da defesa).

Chamemos a este tempo novo, tempo da representação, tempo da criatividade, tempo do pensamento lateral, tempo da preguiça!

Será por este carácter excepcional do emprego do tempo que a fama e as prerrogativas especiais da arte chegaram até onde chegaram? Estarão na cogitação e distracção criativas as causas difíceis de descrever, mas nem por isso menos óbvias, e menos eficientes, da excepcionalidade da arte e do seu valor? Será esta originalidade espacial-temporal que explica o valor de refúgio espiritual, mas também material da arte? Não sei, mas gostaria de saber.
Copyright © 2010 by António Cerveira Pinto


NOTAS
  1. Contas de conchas de Nassarius gibbosulus encontradas na Grotte des Pigeons (Taforalt Cave, Marrocos) foram entretanto (2007) datadas de há 82 mil anos — PNAS.

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