domingo, 9 de março de 2008

Arte e Política

Paula Rego — Uivando, 1994

Praxis e corrupção
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

I

Um dos principais espinhos de uma abordagem das relações entre arte e política deriva da complexidade crescente de ambos os termos da relação.

A arte tornou-se um universo distante, especulativo (leia-se corrupto) e complexo. A política tornou-se um universo distante, especulativo (leia-se corrupto) e complexo.

No domínio artístico a imperceptibilidade da arte, faz com que a mesma só consiga ver-se quando previamente emoldurada por uma retórica ostensiva da mediação, e sobretudo quando a sua visibilidade rompe o contínuo mediático através da emergência espectacular de uma qualquer instanciação mercantil especulativa.

Vejamos alguns exemplos e contra-exemplos recentes e da casa.

29-02-2008. “Um quadro de Paula Rego, a pintura “The Egyptian Cats”, foi vendido ontem à noite, em Lisboa, por 280 mil euros, o que constitui um novo valor recorde nacional em leilões de obras da autora.
Os trabalhos da pintora Paula Rego continuam a mostrar a maior cotação nos mercados internacionais e agora também no mercado nacional com a venda de ontem à noite, em Lisboa, da pintura “The Egyptian Cats”, por 280 mil euros. — RTP.

27-02-2008. Um quadro da artista portuguesa Paula Rego foi hoje vendido em leilão em Londres por mais de 740 mil euros, representando um novo recorde, disse à agência Lusa fonte da leiloeira Sotheby’s.

“O quadro foi vendido por 740.599 euros (558.800 libras), o que é um novo recorde mundial para a artista”, afirmou um porta-voz da Sotheby’s.

O quadro vendido hoje na capital britânica foi “Baying” (Uivando, em português), uma tela pintada a pastel datada de 1994 e avaliada inicialmente entre entre 350 mil e 500 mil libras (464 mil e 663 mil euros). — Expresso.

01-06-2007 – 16h00 Lusa. “Um quadro de Paula Rego foi vendido em leilão ontem à noite, em Londres, por 560 mil euros, o valor mais alto alguma vez pago por uma obra da pintora, anunciou hoje a leiloeira Christie’s.” — Público.

25-06-2005. “Um quadro de Paula Rego, Target (Alvo), um dos mais famosos da série da Mulher-Cão, acaba de ser vendido, em Londres, no leilão de Verão da Sotheby’s, por mais de meio milhão de euros, estabelecendo um nove recorde na cotação da pintora no mercado mundial de arte. Além desta obra, duas pinturas de Vieira da Silva e uma de Graça Morais integravam o lote de 388 peças, cujo conjunto foi vendido por 30 milhões de euros.” — Diário de Notícias.

Há alguns anos atrás, o comprador-mor de obras para a colecção de arte contemporânea da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, resolvera desconsiderar esta artista vendendo a única obra então no acervo da dita Fundação, com o argumento intempestivo de que não gostava da obra de Paula Rego, que a considerava uma artista secundária e outros mimos do género. O comissário, entretanto caído em desgraça e desaparecido, estava convencido que o grande génio da arte portuguesa do último quartel do século passado era um tal Rui Chaves, tendo por esse motivo (e seguramente pela amizade que os unia) comprado umas dezenas de obras, entre esculturas e desenhos. O mesmo fez com outros artistas da época, hoje, como então (para olhos mais atentos e experientes) completamente irrelevantes.

Entre os valores muito promovidos da genialidade pós-moderna lusitana estavam dois artistas muito activos na sua própria auto-promoção, presentes em todas as exposições nacionais relevantes dos últimos vinte anos e ainda nalgumas das mais prestigiadas exposições internacionais: Documenta, Bienal de Veneza e Bienal de São Paulo, entre outras.

No entanto, passado todo este tempo, e apesar de continuarem a caminhar em bicos de pés, atropelando colegas e gerações inteiras de artistas mais velhos e mais jovens, personagens como Julião Sarmento, ou Pedro Cabrita Reis, ocupam lugares modestíssimos nos leilões da Sotheby’s e da Christie’s. O máximo que uma obra de Sarmento conseguiu numa leiloeira foram 75 mil euros, e as obras de Pedro Cabrita Reis levadas a leilão, nomeadamente por galerias que o expuseram, têm tido resultados muito decepcionantes, pois ficam invariavelmente sem comprador. A venda por 30 mil euros de uma obra sua na primeira iniciativa de uma nova casa leiloeira lisboeta, ficou-se pelo valor mínimo da licitação (“noblesse oblige”…)

Esta incursão pelo domínio duro do mercado serve para ajudar-nos a estabelecer uma primeira clarificação: não defendemos confundir o poder do mercado com os poderes políticos domésticos.

O primeiro, projecta efectivamente os “seus” artistas para o pódio da visibilidade prolongada, da reflexão disciplinar e da consagração cultural e económica, em extensões geoestratégicas coerentes com a influência efectiva dos mercados. Todos os estudos até hoje realizados mostram a íntima relação entre o poder económico e geoestratégico de países como os Estados Unidos, a Alemanha e o próprio Reino Unido, e o protagonismo dos artistas que crescem sob sua protecção. A evolução recente dos preços e da visibilidade dos artistas chineses e indianos só vem confirmar esta regra do Capitalismo global.

O segundo, pelo contrário, é a principal fonte do provincianismo cultural e da desigualdade de oportunidades entre os potenciais candidatos a uma carreira artística de sucesso. Dormir com o poder não gera boa arte, mas pode ajudar, sobretudo nos países periféricos, a criar do nada embustes de toda a espécie.

II

Há porém uma questão bem mais funda e interessante nas relações entre arte e poder nesta época terminal do Capitalismo: saber se a arte pode ou não regressar à Realidade.

A arte Ocidental do século 20 plasmou-se, no essencial, como uma tendência para a abstracção. As tendências realistas foram sendo paulatinamente subjugadas pelo império da desfiguração neurótica e da análise formal crítica. Houve razões fortes para que tal acontecesse, mas o certo e triste é que a segmentação analítica sistemática da produção e da recepção estéticas acabaria por redundar numa bifurcação fatal: por um lado, as artes derivaram para uma estética contínua da propaganda e da produção-e-reprodução industrial; por outro, no laboratório da experimentação vanguardista, foi-se tornando incompreensível e inapreensível fora dos jogos micrológicos da contextualização receptiva, cuja consistência analítica foi perdendo força à medida que a ilusão do progresso se foi metamorfoseando numa ideologia do cinismo cultural, e a própria “abstracção” da arte se tornou o timbre por excelência da sua reificação mercantil. O “valor da arte” é, em primeiro lugar, um valor especulativo de refúgio para as grandes fortunas. Ou seja, esconde-se nos paraísos fiscais da pirataria mundial que hoje conspira para arruinar a humanidade em nome da hipostasiação irracional e criminosa dos activos financeiros e da imensa economia virtual de rapina que, no preciso momento em que vos falo, está a abalar a solidez de um número crescente de economias em todo o planeta. Incluindo a nossa!

Num certo sentido temos que regressar rapidamente à Realidade!

O processo de criação artística tem que ser de novo e radicalmente repensado.
Na minha opinião, os museus, hoje na sua quase esmagadora maioria falidos, ou sequestrados pelos poderes fácticos e pelos próprios protagonistas da instrumentalização especulativa criminosa dos valores culturais da humanidade, têm que passar por uma mudança drástica de objectivos. No quadro das emergências várias que actualmente atravessam a realidade humana, o museu de que precisamos deve metamorfosear-se em direcção à constituição de redes sociais de criatividade e representação simbólica efectiva da realidade.


NOTA: este texto foi escrito para a mesa-redonda “Arte e Política: perspectivas contemporâneas”, promovida pelo Museu do Neorealismo em 9 de Março de 2008 e moderada pelo seu director David Santos, com Miguel von Hafe Pérez e Nuno Faria.

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