sexta-feira, 1 de março de 2002

Suporte, Superfície, Figura

Pires Vieira - s/t, 1970
esmalte acrílico s/ madeira

Pires Vieira: a pintura como estrutura
por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO

Uma das pequenas tragédias da arte portuguesa contemporânea é a sua inexistência, ou melhor, é o desaparecimento que a atinge, fruto do isolamento público, da ignorância, da irresponsabilidade institucional e das fraquezas próprias dos artistas que só raramente resistem a tamanha indiferença. Num sentido quase absoluto poderíamos afirmar que as historietas escritas sobre a arte produzida neste século e neste país são falsas, como falsos são os pseudo museus delas decorrentes. Reina em tal desordem uma ordem essencialmente suspeita.

A invisibilidade museológica de autores, tendências, percursos e momentos marcantes da prática artística é um dos aspectos da ordem referida, e dele decorrem as afirmações repetidas de orfandade por parte dos artistas portugueses sempre que são interrogados sobre a origem das suas formas e convicções estéticas. Na realidade, nenhum jovem criador poderá, por exemplo, entregar-se aos problemas da pintura decorrentes do movimento em direcção à abstracção, instaurado por Cézanne, sem ver como foram abordados ao longo dos últimos cem anos, ou sem saber em que estado se encontram no momento em que decide intervir. E como para tal precisará de encontrar as provas dessa evolução histórica e crítica da pintura, isto é, das obras, dos museus e dos estudos que dêem a conhecer o movimento das representações e das ideias artísticas, poderemos imaginar as dificuldades que esperam qualquer pintor português. Resulta pois difícil crer numa arte condenada a nascer eternamente do nada.

Serve este preâmbulo para convocar uma obra afirmada durante a década de 70 e que, como algumas outras, anda mal parada na historiografia artística que temos, e pior representada nas colecções institucionais que vão sendo dadas a conhecer publicamente. Refiro-me à pintura de Pires Vieira.

Quando nos deparamos com os mais recentes trabalhos deste artista, poucos saberão de ondem efectivamente vêm; se têm algo que ver com algum passado recente da abstracção, ou se é coisa inopinada e passageira. Não percebemos se estamos na presença de um autor isolado, ou se é possível (e desejável) compará-lo com outros artistas, tais como Jorge Pinheiro, Palolo e sobretudo Ângelo de Sousa. Na impossibilidade de pensar nas filiações internas, resta-nos procurar as influências externas: os "support-surfaces", teorizados por Marcelin Pleynet, a pintura de Rothko e de Ad Reinhardt, ou mais recentemente, autores como Brice Marden e Alan McCollum. Haverá uma solução de continuidade entre a sua pintura processual/desconstrutiva realizada entre 1973-75 e a sua pintura mais recente, na qual predomina a vontade de reduzir o plano pictural à inscrição de uma "gestalt", ou seja, a usar a pintura como um espaço neutro onde determinadas formas icónicas aparecem pictoricamente e portanto visivelmente desenhadas, pintadas e coloridas?
Num certo sentido podemos dizer que sim.

Na pintura que se segue ao período mais intencionalmente estruturalista deste autor, refiro-me às grandes telas tonais de 75-76, fazendo lembrar na cor, na escala e na profundidade do plano pictural, a série 'Seagram' (1958-9) de Rothko, em exposição na Tate desde 1970, o momento analítico da primeira fase cede o passo a uma nítida síntese pictorial. Sem deixar de expor a génese do quadro, nas belíssimas telas de 75-76, o que Pires Vieira pretende e consegue é a subordinação dos planos pictórico e pictural ao plano pictorial, ou seja, é a transformação do sistema da pintura no transportador ideal que conduz a recepção estética ao recanto normalmente inacessível da imagem mental - esse lugar onde, segundo os filósofos orientais, se pode chegar à iluminação. Ao contrário de Rothko, porém, esta imagem mental não pertence a uma ordem metafísica, mas, quanto muito, a uma ordem hiperfísica. De tal espaço pictorial irá mais tarde surgir o cenário despolitizado em frente do qual flutuarão as novas silhuetas da sua pintura; os novos ícones incrustrados no espaço pictórico à maneira de uma dinâmica linguagem logotípica, fazendo por vezes lembrar notações muito ampliadas de uma escrita musical heterodoxa.

Num certo sentido podemos afirmar que a pintura de Pires Vieira regressou do divã estruturalista ao quadro nostálgico de uma certa regressão pós-moderna. Não retoma, apesar desse regresso à imagem, o privilégio da janela renascentista (porque é pura e simplesmente impossível), mas sim a ideia insistente de uma visão abstracta do mundo; ou melhor, a ideia insistente de uma sensação abstracta do mundo.

Creio, pessoalmente, que é necessário fazer a crítica desta ilusão experimental. Mas também creio que foi preciso chegar até às extremidades mais absolutas do formalismo pictural e da abstracção pictorial, para que tal crítica se tornasse oportuna. No caso português, proceder a tal género de crítica implicaria reunir numa mesma exposição autores como Fernando Lanhas, Jorge Pinheiro, Ângelo de Sousa, Palolo, Fernando Calhau e Pires Vieira. Pois só deste modo não perderemos tudo o que entre nós foi feito.

Copyright © 2001/ 2011 by António Cerveira Pinto 


NOTA — este texto foi escrito expressamente para um catálogo, no ano de 2001. O título foi entretanto modificado para: "A pintura como estrutura".

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